
Divergência sobre afastamento médico? A conta é da empresa
Não são poucos os casos de desacordo entre os laudos de médicos peritos do Instituto Nacional de Seguridade Nacional (INSS) e de médicos do trabalho ou particulares quanto ao real estado de saúde dos segurados afastados do serviço por mais de 15 dias. No período de “limbo previdenciário”, enquanto não há consenso sobre a capacidade de o funcionário retomar a atividade laboral, os tribunais trabalhistas têm atribuído às empresas a incumbência de arcar com os salários.
“O afastamento do empregado por motivo de saúde, quando inferior a 15 dias, deve ser suportado pela própria empresa. Se, exceder esse prazo, caberá ao INSS, mediante perícia médica, atestar a incapacidade laboral para a concessão do auxílio-doença”, contextualiza o advogado especializado em Direito do Trabalho, Renan Honório Quinalha. Muitas vezes, contudo, o perito do INSS considera o trabalhador apto, discordando da posição de seu médico pessoal ou do médico da empresa.
O desencontro de posicionamentos gera custos com o salário do empregado e, certas vezes, com a contratação de um substituto para a função, é um complicador financeiro para as micro e pequenas empresas e, dependendo da natureza do problema, ainda pode agravar a condição clínica do segurado.
Foi exatamente o que ocorreu com o ex-bancário S.B. Diagnosticado com síndrome do pânico, o então funcionário de uma instituição financeira foi afastado pelo médico da empresa e pelo médico pessoal, mas teve a licença médica negada pelo perito do INSS de sua cidade, no ABC paulista.
“Foi desesperador. Além da doença, que causa mal estar e medo constante, não sabia como pagaria minhas contas, pois meu salário, inclusive do período que aguardei a marcação da perícia, estava suspenso. Ao mesmo tempo, quando os sintomas físicos de tontura, elevação da pressão arterial, palpitação e tremedeira se acentuavam, não tinha condições sequer de sair de casa, muito menos de voltar ao trabalho de cobrança, uma área onde os níveis de estresse são altos. A indefinição agravou o problema”, conta.
Retornando ao trabalho, o ex-bancário foi barrado pela médica da empresa, mas o banco que se dispôs a cobrir a defasagem salarial. “Ainda assim, é uma situação extremamente incômoda. Você se sente desacreditado e desamparado pela instituição para a qual contribuiu sempre. Eu não queria férias, queria me sentir bem novamente”, desabafa.
O caso de S.B. enquadra-se no rol de disfunções que costumam gerar controvérsia: patologias de ordem psiquiátrica e transtornos mentais, dores crônicas, tonturas, vertigem, doenças degenerativas, osteomusculares, etc. “Tudo o que não se consegue medir objetivamente com um exame, por exemplo, pode acarretar discordâncias nas avaliações médicas”, sinaliza o dr. Nelson Chaves, médico especializado em saúde ocupacional.
Ciência inexata
A recorrência de laudos divergentes é confirmada por dr. Chaves. “Os desencontros de opinião são comuns e envolvem o médico do empregado, o da empresa e o do INSS com as mais diferentes variações”, afirma.
Segundo o especialista, a diferença de focos entre os profissionais é uma das causas do problema. “Os interesses são diferentes. A perícia do INSS é dirigida por conceito da legislação previdenciária, com base em relato do médico assistente e seu exame clínico, sem considerar o ambiente de trabalho e a atividade específica. Falta ao perito a vistoria ou o conhecimento acerca do ambiente e da atividade de trabalho, que são de posse do médico da empresa”, pondera.
Para complicar, existem inúmeras CIDs (Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde) para cada enfermidade, que deveriam traduzir a graduação de gravidade da patologia. O uso incorreto, continua o médico, pode interferir nos resultados das perícias.
O diretor da Diretoria de Saúde do Trabalhador (Dirsat) do INSS, dr. Sérgio Carneiro reconhece a existência de avaliações discordantes, embora não exista um estudo ou dados sobre a questão. “Não são raras as diferenças, até entre agências do INSS. Às vezes são avaliados fatores diferentes. A medicina não é uma ciência exata”, complementa.
O desacordo de pareceres ficou evidenciado na experiência vivida por S.B. Depois de ter o afastametno negado por duas vezes em sua cidade, teve o distúrbio reconhecido e o benefício concedido por agência de município vizinho.
Uma das explicações para tais choques de opiniões, confirmada pelos médicos, seria o hiato temporal entre a realização das perícias: o quadro e a gravidade podem se agravar ou amenizar. Outra fonte de divergência, na opinião do dr. Carneiro, é o entendimento acerca do papel da seguridade social. “Não se trata apenas da doença, mas sim de incapacidade laboral, que nem sempre é gerada pela doença. O conceito de seguridade deve ser construído de forma mais sólida na sociedade”, observa.
Denominador comum
Para o diretor do INSS, para evitar mal entendidos nos resultados das perícias, a empresa pode ajudar provendo o perito do maior número de informações possíveis sobre o caso, o ambiente e a função. Os dados podem ser fornecidos com acompanhamento do médico do trabalho à perícia, por meio de laudos técnicos ou com o preenchimento da Solicitação de Informações ao Médico Assistente (Sima) no site da Previdência Social. “Daí a importância do acompanhamento das condições de saúde dos empregados, principalmente de problemas recorrentes ou crônicos”, recomenda dr. Chaves.
Também é importante, ressalta o médico, a atuação preventiva, avaliando os riscos ambientais e laborais. “Se o ambiente tem muito ruído, deve-se não somente promover exames periódicos, mas também contar com equipamentos de proteção individual e buscar a redução das fontes de ruído”, exemplifica o especialista.
Ainda de acordo com dr. Chaves, é preciso pensar preventivamente desde a contratação, com realização de exame admissional sério e consideração do perfil adequado para a vaga. “Não se pode contratar alguém para realizar uma função que agrave uma condição já existente”, alerta.
Reavaliação
Se o resultado da perícia do INSS conflitar com a visão do médico pessoal ou da empresa, pode-se apresentar pedido de reconsideração com outro médico e, mantendo-se a discordância, ingressar com ação na Justiça contra o órgão. “Mudanças no quadro clínico – pioras – também devem originar outra perícia, pois há novos dados e a avaliação deve ser revista”, garante o dr. Carneiro.
O médico do trabalho esclarece que a recusa do INSS e a indefinição da situação realmente podem agravar a doença do funcionário. “A empresa não deve deixar que o trabalhador retorne à função sem uma liberação de seu médico do trabalho. Se o empregado não tiver condição de trabalhar, nunca se deve permitir o retorno”, adverte.
A empresa pode, ainda, conforme recomenda o diretor do INSS, tentar realocar o funcionário em outra função que não cause piora no quadro clínico. “O afastamento do trabalho nem sempre é bom. Dependendo do problema, o trabalho tem função social fundamental. A reabilitação do trabalhador faz parte das responsabilidades da empresa”, argumenta dr. Carneiro.
Não havendo possibilidade de realocação e mantendo-se a negação do benefício pelo INSS, o diretor é taxativo: “A empresa deve arcar com o salário do empregado”.
Justiça: Ônus é da empresa
As decisões judiciais dos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) e do Tribunal Superior do Trabalho (TST) nos processos em que o funcionário teve negado o benefício do INSS e a empresa não proporcionou a realocação ou não permitiu a volta ao trabalho têm convergido na responsabilização da empresa. Além dos salários e demais verbas, as companhias podem ser condenadas a pagar danos morais.
Quinalha comenta que a situação tem sido bastante comum nos casos da “alta programada”, nova política para reduzir o número de beneficiários do auxílio-doença.
Ele aponta alternativas para os empregadores. “A primeira é intimar o trabalhador, por meio de um ato convocatório formal, para exercer a mesma função ou uma função compatível com suas limitações de saúde. Se o empregado se recusar a retornar, a empresa poderá dispensá-lo e até alegar abandono de emprego”, explica.
O envio do ato convocatório, salienta o advogado, demonstra que a empresa não consente, ainda que tacitamente, com o afastamento do funcionário. “Uma vez caracterizada a concordância da empresa, ela assume a responsabilidade pela remuneração durante o período de afastamento”, ressalva.
Se o empregado não tiver condições de exercer função alguma na empresa, o médico do trabalho deve fornecer carta de encaminhamento com atestado de incapacidade para solicitação de novo pedido de benefício em outro posto do INSS, preferencialmente de menor movimento, pois, segundo o advogado, sabe-se que nos postos de mais movimento há limites de concessões de benefícios, o que dificulta os pedidos.
“A empresa pode auxiliar o trabalhador a recorrer perante o INSS ou mesmo no ajuizamento de uma ação de concessão de benefício previdenciário na Justiça Federal, quando o empregado será examinado por perito judicial, aumentando as chances de concessão”, elucida Quinalha, lembrando que esta alternativa não exime a empresa de remunerar o período de afastamento.
Outra alternativa é aguardar a decisão do recurso administrativo e, mediante um termo assinado, se comprometer a pagar os salários até a definição. No termo, o funcionário deve se comprometer a ressarcir o empregador se receber o benefício retroativamente.
“Por fim, a alternativa da dispensa, ainda que possível, poderá trazer riscos de reintegração do empregado enquanto permanecer a indefinição. Se o benefício previdenciário for restabelecido, será pago retroativamente, ou seja, desde a data do recurso, o que significa que o contrato de trabalho permaneceu suspenso durante todo o período, possivelmente invalidando a dispensa efetuada”, conclui.
Fonte: Contas em Revista